quinta-feira, 9 de abril de 2009

o café estragado

S. saiu do edifício decidida a apanhar um pouco de ar, usando o ir buscar um café como pretexto. Dirigiu-se a uma espécie de quiosque, igual a tantos outros, o mesmo é dizer que tinha os seus painéis dobradiços atafulhados de diferentes tarifas de telefone para qualquer parte do mundo, cada uma de sua companhia, cada país com a sua côr, em intermináveis tiras fininhas, e, no centro, ao invés de um tapete persa coberto de pequenas mercadorias orientais, um tabuleiro de chapa onde estavam instaladas uma diversidade maior do que alguém poderia desejar de chocolates e crisps. Nesse quiosque estava um homem de cabelos espessos, penteados de madrugada com um pedaço de plástico, tendo-se contentado facilmente com o resultado apesar do cocuruto ter continuado evidentemente amolgado da almofada, o que lhe conferia uma onda negra onde pedaços de escalpe necrótico flutuavam em jeito perene. S. cumprimentou-o, mas ele não largou os olhos do jornal e o punho manteve-se mole contra a têmpora direita. S. pediu-lhe um café e dois segundos depois, o seu adversário endireitou as costas, num grande desajeito, e inquiriu-a se o queria médio ou grande (por defeito, pequeno não havia), ela afirmou, médio, e enquanto o homem lhe virava as costas, o estômago de S. preparou-se para receber o reconfortante líquido, o esófago resfastelou-se em calorosa antecipação, a laringe dilatou-se e era como se de repente já estivesse o café a escorregar-lhe pelo estreito. Certamente não iria ser o melhor café de sempre, pensou, mas fazia frio e a cabeça apertava de vasoconstrição. Tomava consciência de todo este aprontamento orgânico quando o homem afirmou, antes de estender a caneca de cartão na direcção de S. e com um tom de voz desnecessariamente elevado, two poun. S. enfiou a mão na algibeira direita do casacão, sentiu-lhe o forro, mais as chaves de casa e dois antigos bilhetes de comboio, murmurou para si mesma, tu queres ver?..., foi ao outro bolso, às calças, foi ao dia anterior em que chegara a casa pelas nove da noite, foi ao casaco atirado para cima do sofá, foi ao ter pegado num outro menos quente nessa manhã e os ombros desceram-se-lhe. Com um sorriso, que se diria generoso, S. explicou ao homem isso mesmo, que a carteira evidentemente ficara em casa, e não tinha como lhe pagar o café, que já estava tirado, e, acrescentou, como lhe era da sua graça, que ou ele lhe oferecia o café e ela lhe ficava extremamente grata, pagando-o num outro dia, ou o atirava para o lixo, o que seria uma pena. O homem disse que preferia atirá-lo para o lixo e assim o fez, voltando o olhar para o jornal onde leu a seguinte notícia, tradutor de golfinhos: cientista assegura que está próximo de compreender os golfinhos com a ajuda de um aparelho de tradução.

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