segunda-feira, 19 de outubro de 2009

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

na cave

havia, na minha adolescência, uma cave povoada de criaturas grunge que fumavam e bebiam
café em eternidades subterrâneas. eu passava por elas a caminho do barbeiro
(pretexto que encontrei para submergir) e, enquanto esperava pela vez, ia mirando aqueles seres marinhos de cigarros pousados num tédio cool. na cave do centro comercial encontrava-se também uma reprografia, uma loja de produtos indianos, uma discoteca falida e mais tarde
uma casa de bilhar. podia-se lá entrar directamente pelo parque de estacionamento, o que trazia irreverência e cheiro a lixo. naquele café poisavam sempre as mesmas pessoas, sempre mais velhas do que eu, numa espécie de clube do qual eu definitivamente não pertencia.
afirmava-se ali a languidez, uma revolta silenciosa e estúpida, contra-cultura proclamada por pires a fazer a vez de cinzeiros, da qual eu definitivamente queria fazer parte, imagine-se.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

setembro

preparava-me para ir comprar uns coentros
toquei-a na testa suada
passei a mão direita
pelos seus ossos
da cara
como quem sente uma estátua molhada
ela chamou pelo pai
descreveu-me como a sua avó a
curava de tudo com laranjas
e sopas,
sobretudo.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

plaistow road



não conseguiu preencher a ficha
(esquecera-se dos óculos)
mandei-o entrar na mesma
e segundos depois
um homem enorme
congolês
sentado na cadeira (demasiado estreita).
nao foi possível estabelecer comunicação entre nós.


Jade, 21 anos, grávida
do segundo filho
teve hoje dois molares chumbados.
continua a nao escovar
la atrás
(assume-o com sensualidade).
chegou à consulta de pijama encarnado
e com cinco 

minutos de atraso.


há neste gabinete qualquer coisa
que me repugna
e que está representado na
turbina
quando esguicha água para todo o lado
de cada vez que
tento
brocar um dente.



o paciente das duas e cinquenta chegou só agora,
diz-me receosa a recepcionista
enquanto morde
um lápis nodoso.
mas o que ela queria saber era se eu o ia ver
mesmo estando vinte minutos atrasado
por encontrar-me ocupado a analisar uma janela,
mandei-o embora
(esbocei um gesto com a mão que na altura não me saiu muito bem).
segundos depois
do outro lado da porta ouvi
gritos
vociferações
e o som de um punho
contra uma superfície
que nao identifiquei.



a mulher asiática
com ar de quem nao dorme há 3 noites
queixou-se-me de dores
num queixal.
dores surdas
que a faziam fantasiar com a luxação,
com o espremer do osso e
com o som do sangue a escorrer pelo alveolo.
em suma,
a fantasia da extracção.
tenho encontrado esta fantasia em muitos pacientes.



de maneira que no final do dia
estava com cerca de uma hora de atraso.
a ultima doente entrou:
uma miuda de 12 anos
arrastada pela mãe, que
por sua vez,
tinha ar de troglodita.
a aparência confirmou a atitude
e corri com as duas em três tempos
como consequência do curto diálogo
ocorrido.
ao abandonar a clínica,
acanhei-me no sobretudo e
olhei em várias direcções
não fosse vir alguém
que me enfiasse uma faca
no lombo.

domingo, 19 de abril de 2009

O fervedor estragado

Farto de escavar a ferrugem da única panela que aqui tenho, comprei um fervedor de água moderno. A sua constituição é em inox e plástico e tem um design simples e funcional, querendo com isto dizer que o seu pescoço não é demasiado estreito e portanto dá para introduzir uma mão no seu interior, com objectivo de limpeza. Mal cheguei a casa decidi experimentá-lo, mas constatei imediatamente que um dos botões não funcionava muito bem - estava pêrro e de difícil aperto.
Aborrecido, empacotei-o de novo, seguindo a ordem original do embrulho, e certifiquei-me de que tinha o recibo para o poder trocar na próxima oportunidade.
Quando vi que iria ter um par de horas livres para ir à loja, decidi tirar o fervedor de água da caixa onde jazia há uma semana. Experimentei de novo o botão e já não me pareceu pêrro como dantes. Não é um botão dos mais sensíveis, concluí.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Acerca de boleias

Sempre que dois passageiros recebem boleia de um condutor de um automóvel de três portas, para que por sua vez os deixe nos respectivos destinos, e quantas vezes não saltam as pessoas de destino para destino como quem apanha diferentes autocarros a caminho do emprego, mas como dizia, perante a decisão de distribuir os passageiros pelo automóvel surge uma certa cerimónia facilmente resolvida pela ordem de evacuação. Assim, em noventa e sete por cento das vezes, o passageiro que chegará ao seu destino mais cedo vê o lugar da frente atribuído à sua pessoa, ao passo que o segundo, aquele que se encontra mais perto do destino final do condutor, se vê renegado ao banco de trás. Esta é uma decisão o mais das vezes unânime por estar aparentemente assente numa lógica.
Mas, vejamos, a não ser que o segundo passageiro, após largado o primeiro, se resigne ao banco traseiro, e, como consequência, deixe o condutor na humilhante posição de chaffeur (indigno apenas se não forem pagos quaisquer honorários ao mesmo), o que por isso mesmo consitui uma opção rara, o número de vezes em que o mecanismo das costas do respectivo banco é accionado, para o deslocar para a frente e para trás, é o mesmo, quer o passageiro da frente saia mais cedo do carro que o de trás ou não.
Conclui-se então ser absurdo usar esse raciocínio para definir a distribuição de lugares num veículo ligeiro de três portas.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

o café estragado

S. saiu do edifício decidida a apanhar um pouco de ar, usando o ir buscar um café como pretexto. Dirigiu-se a uma espécie de quiosque, igual a tantos outros, o mesmo é dizer que tinha os seus painéis dobradiços atafulhados de diferentes tarifas de telefone para qualquer parte do mundo, cada uma de sua companhia, cada país com a sua côr, em intermináveis tiras fininhas, e, no centro, ao invés de um tapete persa coberto de pequenas mercadorias orientais, um tabuleiro de chapa onde estavam instaladas uma diversidade maior do que alguém poderia desejar de chocolates e crisps. Nesse quiosque estava um homem de cabelos espessos, penteados de madrugada com um pedaço de plástico, tendo-se contentado facilmente com o resultado apesar do cocuruto ter continuado evidentemente amolgado da almofada, o que lhe conferia uma onda negra onde pedaços de escalpe necrótico flutuavam em jeito perene. S. cumprimentou-o, mas ele não largou os olhos do jornal e o punho manteve-se mole contra a têmpora direita. S. pediu-lhe um café e dois segundos depois, o seu adversário endireitou as costas, num grande desajeito, e inquiriu-a se o queria médio ou grande (por defeito, pequeno não havia), ela afirmou, médio, e enquanto o homem lhe virava as costas, o estômago de S. preparou-se para receber o reconfortante líquido, o esófago resfastelou-se em calorosa antecipação, a laringe dilatou-se e era como se de repente já estivesse o café a escorregar-lhe pelo estreito. Certamente não iria ser o melhor café de sempre, pensou, mas fazia frio e a cabeça apertava de vasoconstrição. Tomava consciência de todo este aprontamento orgânico quando o homem afirmou, antes de estender a caneca de cartão na direcção de S. e com um tom de voz desnecessariamente elevado, two poun. S. enfiou a mão na algibeira direita do casacão, sentiu-lhe o forro, mais as chaves de casa e dois antigos bilhetes de comboio, murmurou para si mesma, tu queres ver?..., foi ao outro bolso, às calças, foi ao dia anterior em que chegara a casa pelas nove da noite, foi ao casaco atirado para cima do sofá, foi ao ter pegado num outro menos quente nessa manhã e os ombros desceram-se-lhe. Com um sorriso, que se diria generoso, S. explicou ao homem isso mesmo, que a carteira evidentemente ficara em casa, e não tinha como lhe pagar o café, que já estava tirado, e, acrescentou, como lhe era da sua graça, que ou ele lhe oferecia o café e ela lhe ficava extremamente grata, pagando-o num outro dia, ou o atirava para o lixo, o que seria uma pena. O homem disse que preferia atirá-lo para o lixo e assim o fez, voltando o olhar para o jornal onde leu a seguinte notícia, tradutor de golfinhos: cientista assegura que está próximo de compreender os golfinhos com a ajuda de um aparelho de tradução.

domingo, 16 de novembro de 2008

Soho

Encontrámos um casal conhecido num bar do Soho do qual pouco mais sabíamos para além das nacionalidades - albanesa e americana. Um casal improvável, talvez, e ele rapava os pêlos do peito. Mas encontramo-los num bar do Soho e fomos convidados para uma festa especial, disse o cabrão do albanês, dando-me uma pancada nas costas como se tivessemos andado na guerra juntos e eu pensei cabrão do caraças era bom era que... enfim..., ela aproximava muito a cara da minha, dando-me a sensação de que se estava sempre a despedir com dois beijinhos e uma das vezes cheguei a beijá-la de lado, o que deve ter sido insólito, tendo em conta que me pediu lume.
Conduzidos então pelo albanês pelas ruas do Soho (o mesmo é dizer homens vestidos de mulher; homens a vomitar pendurados nos sinais de trânsito; mulheres sentadas na berma iluminadas por uns faróis de carro preocupados; táxis-triciclo à moda oriental conduzidos por polacos; etc) dirigíamo-nos ao destino incerto, à festa especial, para a qual, depois de uma pausa no seu discurso que sugeriu reflexão, o albanês nos disse
vocês não pagam, ok?
ziguezagueava ele de costas quadradas e rabo de cavalo digno de 1992 e eu tonto de me desviar da ave de rapina daquela cara americana de voz grossa mas agradável. É aqui, disse o gajo, e eu pensei que ele se tivesse a referir ao bar que tinha uma fila de 30 pessoas, mas era a porta ao lado, a porta de madeira molhada pintada de azul que me fazia lembrar elephant and castle e as suas barracas.
Lá dentro fui informaram-me de que o espaço era dum primo de alguém (ah sim?), ofereceram-nos bebidas, eu escolhi cerveja, e um gordo caspudo surgiu
a vossa cabine fica livre em 2 minutos
e 2 minutos mais tarde concluí que ía ser encarcerado com aqueles dois numa cabine de karaoke.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

espargos ou senti nostalgia naquela manhã

O que mais me agradava nos meus passeios por lisboa era encontrar ruas novas para mim de cada vez que a percorria, novos edifícios, calçadas encarquilhadas, degraus vesgos vergados de solas. Acontecia-me com frequência encontrar, ao lado de ruas bastante famosas da minha percepção, outras desconhecidas, nunca as tinha visto e elas ali misteriosamente há uns duzentos anos, e as pessoas que as habitam, em silêncio de brisa, na escuridão das portas pequenas, vizinhas das outras maiores acorrentadas em ferrugem, degraus húmidos, folhas mortas. Uma estaca de metal que sublinhava a corrente do portão de um palacete na rua do teixeira era percorrida - se espreitássemos por entre as frinchas do ferro - por insectos pedestres que a tomaram como árvore, por exemplo.
Dou por mim emocionado na varanda de são pedro de alcântara perante o amplo esplendor desta cidade. Tento identificar as zonas: penha de frança, torel, lavra, graça, o castelo, mas ao esticar o pescoço mais à frente, sobre a minha direita, assusto-me com o reflexo do sol no tejo, (maldito rio de sol, terei dito) a sé em contra-luz e humedeceram-se-me os olhos, não sei se do inesperado brilho se doutra coisa qualquer (lembro-me de tudo com um certo pudor) enquanto turistas filmavam o ascensor da glória. Eu só conseguia pensar em como este rio nos persegue em cada esquina dobrada, todo o peso de uma nação que por ele corre, testemunha de um povo lamuriento. O rio ao longe como a morte que nos espreita, é isso que queria dizer. Tal como o cristo-redentor afaga os cariocas de cada vez que erguem o olhar, o tejo ancora-nos a alma de cada vez que o baixamos, o que me levanta dúvidas acerca de o poder abandonar por muito tempo.
Nesse dia não aproveitei os espargos verdes que tinha armazenado no frigorífico, na verdade não aguentam muito tempo sem serem cozinhados. Mas eis como o fiz em dias claros:
-parti o caule no sítio onde deve ser partido e para isso bastou dobrá-los até ao insuportável;
-aqueci azeite com sementes de piri-piri e, quando me lembrei, atirei os espargos;
-salpiquei com sal em movimentos indecisos;
-o lume encontrava-se baixo e esperei uns 8 minutos (e virando os espargos, memorizei rachas);
-servi com uns bofes de vinagre balsâmico e queijo parmesão em lascas.

Avaliei o resultado e concordei com o Dostoievski quando disse que o normal é apenas uma palavra que corresponde à incapacidade de observar a incontornável nuance.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

a propósito de lojas de chineses

lisboa é uma rua deserta de gente com um carro funerário encostado de mandíbulas de bagageira escancaradas sob o sol do meio dia, e o azul porcelana de um céu sem brilho interrogando candeeiros que por esquecimento ou falha técnica permanecem ligados, pensava eu a caminho de uma miragem de mercado impossível em dia de feriado municipal, determinado a não pagar 2 euros por um saco de três quilos de batatas francesas, clarinhas e limpinhas ao ponto de se lhas apetecer lamber,
lisboa é o senhor de camisa azul porcelana baça com manchas circulares de humidade de epicentro de sovaco enfiada por dentro das calças cinzentas, as mangas arregaçadas descobrindo braços morenos que arrastam o carvalho de caixão para os fundos do carro funerário em fulgor de rins, pensava tal como pensava nas batatas que me alimentaria a sopa, dois ou três espécimens, não quero sacos de três quilos, murmurava, já, sem saber se o murmúrio seria audível às ilhas de 
tristes árvores de passeio. para mim uma sopa pode levar:

-3 batatas, sem casca (pois não a querem mais tarde alojada entre incisivos a fazer as vezes de papilas de gengiva nicotínicas) de tamanho médio (o mesmo é dizer que o tamanho é indiferente, neste caso, a não ser que sejam esquisitos)
-uma cebola pequena (como alternativa prática, cortar uma cebola ao meio)
- alho francês (por uma questão lúdica, eliminem as folhas superficiais, tesas e de verde intenso quase azul, e contentem-se apenas com as virgens e tenras do interior. este conselho é aplicável a outros aspectos da vida)
- umas 350g de cogumelos (esfregá-los com propósitos higiénicos cria sempre a tentação repulsiva de os trincar crus, bem sei, o sabor de madeira fúngica a desfazer-se em troncos de húmus no interior das bochechas tornando a saliva numa espécie de margem espumosa de barragem hidroeléctrica)
- uma cenoura (mais que isso e terão como resultado um creme juvenil de levar para a praia)
- azeite
- pimenta branca
- 4 dentes de alho (ou menos, dependendo do tempo que decorreu desde a vossa última visita ao Príncipe do Calhariz)
tudo passadinho mas com rigor de ministro da economia, ou, noutras palavras, saber-vos-á bem alguma textura de sopa a escamar pelo dorso da língua

dizia eu que partia em busca de batatas que não fossem de três quilos a saca pois a questão é que vivendo sozinho teme-se pelo crescimento do grelo. o grelo em inglês diz-se
sprout, se estiverem interessado. diz-se que pelo grelo se pode avaliar a ausência de frescura do tubérculo tal como pelas neoplasias espalhadas pelas mãos e braços se se revele a senilidade dos jogadores de cartas da alameda afonso henriques, fugitivos das casas de repouso circundantes. o grelo cresce por vezes por entre os buracos de rede dos sacos das batatas em âncoras de unhas de gato no parapeito quando estes se recusam a serem atirados janela abaixo. numa palavra: tumores repugnantes mas que suscitam curiosidade, sem dúvida.
ao contemplar um saco de batatas de origem francesa no minipreço imaginei magníficas estufas maquinadas por máquinas em vez de mãos de carne de terra nas unhas tomei-lhe o cheiro insípido das cadeias de moléculas inorgânicas do plástico mas sobretudo imaginei os tentáculos felpudos de grelo a emergirem da superfície de batata como para o indivíduo desprevenido os blocos de prédios suburbanos surgem de um dia para o outro na paisagem rural.
desci do largo do mitelo para o desterro atravessando agências funerárias prometedoras de descanso eterno tubercular e lembrei-me de que um molho de cebolinho também não ficaria mal na sopa. um prédio de vidros partidos e garrafas de cerveja aos bocados e poças de urina em remendos de alcatrão levaram-me ao intendente e à avenida almirante reis com as suas pensões de linóleo mal colado e sujo onde uma vez por curiosidade de grelo entrei e, fingi-me estrangeiro, caminhei por dez minutos protegendo-me em arestas de sombras do sol vertical de lisboa ao meio dia em feriado municipal. no meio de portas de alumínio, de janelas de alumínio de cabos de televisão meio soltos nas paredes e telhados de onde pendem cobertores ensopados ainda do inverno fantasmas de pessoas desterradas reunidas em lojas de telefones onde as chamadas internacionais são mais baratas vagueavam. atravessei tudo isso e até os búzios do ramiro que engoli de mãos inchadas pelo azoto líquido do hospital do desterro com que o meu pai me tirou os cravos das mãos e cheguei à única frutaria aberta em lisboa em dia de feriado municipal: é de chineses e só tem produtos nacionais, as batatas vêm com terra e os tomates cheiram a chuva.
mas lisboa não é isso.