quinta-feira, 12 de junho de 2008

a propósito de lojas de chineses

lisboa é uma rua deserta de gente com um carro funerário encostado de mandíbulas de bagageira escancaradas sob o sol do meio dia, e o azul porcelana de um céu sem brilho interrogando candeeiros que por esquecimento ou falha técnica permanecem ligados, pensava eu a caminho de uma miragem de mercado impossível em dia de feriado municipal, determinado a não pagar 2 euros por um saco de três quilos de batatas francesas, clarinhas e limpinhas ao ponto de se lhas apetecer lamber,
lisboa é o senhor de camisa azul porcelana baça com manchas circulares de humidade de epicentro de sovaco enfiada por dentro das calças cinzentas, as mangas arregaçadas descobrindo braços morenos que arrastam o carvalho de caixão para os fundos do carro funerário em fulgor de rins, pensava tal como pensava nas batatas que me alimentaria a sopa, dois ou três espécimens, não quero sacos de três quilos, murmurava, já, sem saber se o murmúrio seria audível às ilhas de 
tristes árvores de passeio. para mim uma sopa pode levar:

-3 batatas, sem casca (pois não a querem mais tarde alojada entre incisivos a fazer as vezes de papilas de gengiva nicotínicas) de tamanho médio (o mesmo é dizer que o tamanho é indiferente, neste caso, a não ser que sejam esquisitos)
-uma cebola pequena (como alternativa prática, cortar uma cebola ao meio)
- alho francês (por uma questão lúdica, eliminem as folhas superficiais, tesas e de verde intenso quase azul, e contentem-se apenas com as virgens e tenras do interior. este conselho é aplicável a outros aspectos da vida)
- umas 350g de cogumelos (esfregá-los com propósitos higiénicos cria sempre a tentação repulsiva de os trincar crus, bem sei, o sabor de madeira fúngica a desfazer-se em troncos de húmus no interior das bochechas tornando a saliva numa espécie de margem espumosa de barragem hidroeléctrica)
- uma cenoura (mais que isso e terão como resultado um creme juvenil de levar para a praia)
- azeite
- pimenta branca
- 4 dentes de alho (ou menos, dependendo do tempo que decorreu desde a vossa última visita ao Príncipe do Calhariz)
tudo passadinho mas com rigor de ministro da economia, ou, noutras palavras, saber-vos-á bem alguma textura de sopa a escamar pelo dorso da língua

dizia eu que partia em busca de batatas que não fossem de três quilos a saca pois a questão é que vivendo sozinho teme-se pelo crescimento do grelo. o grelo em inglês diz-se
sprout, se estiverem interessado. diz-se que pelo grelo se pode avaliar a ausência de frescura do tubérculo tal como pelas neoplasias espalhadas pelas mãos e braços se se revele a senilidade dos jogadores de cartas da alameda afonso henriques, fugitivos das casas de repouso circundantes. o grelo cresce por vezes por entre os buracos de rede dos sacos das batatas em âncoras de unhas de gato no parapeito quando estes se recusam a serem atirados janela abaixo. numa palavra: tumores repugnantes mas que suscitam curiosidade, sem dúvida.
ao contemplar um saco de batatas de origem francesa no minipreço imaginei magníficas estufas maquinadas por máquinas em vez de mãos de carne de terra nas unhas tomei-lhe o cheiro insípido das cadeias de moléculas inorgânicas do plástico mas sobretudo imaginei os tentáculos felpudos de grelo a emergirem da superfície de batata como para o indivíduo desprevenido os blocos de prédios suburbanos surgem de um dia para o outro na paisagem rural.
desci do largo do mitelo para o desterro atravessando agências funerárias prometedoras de descanso eterno tubercular e lembrei-me de que um molho de cebolinho também não ficaria mal na sopa. um prédio de vidros partidos e garrafas de cerveja aos bocados e poças de urina em remendos de alcatrão levaram-me ao intendente e à avenida almirante reis com as suas pensões de linóleo mal colado e sujo onde uma vez por curiosidade de grelo entrei e, fingi-me estrangeiro, caminhei por dez minutos protegendo-me em arestas de sombras do sol vertical de lisboa ao meio dia em feriado municipal. no meio de portas de alumínio, de janelas de alumínio de cabos de televisão meio soltos nas paredes e telhados de onde pendem cobertores ensopados ainda do inverno fantasmas de pessoas desterradas reunidas em lojas de telefones onde as chamadas internacionais são mais baratas vagueavam. atravessei tudo isso e até os búzios do ramiro que engoli de mãos inchadas pelo azoto líquido do hospital do desterro com que o meu pai me tirou os cravos das mãos e cheguei à única frutaria aberta em lisboa em dia de feriado municipal: é de chineses e só tem produtos nacionais, as batatas vêm com terra e os tomates cheiram a chuva.
mas lisboa não é isso.